Se Gil Vicente é reconhecidamente o fundador da dramaturgia portuguesa é, também, pela natureza das suas funções e antes do tempo, o primeiro encenador português, no conceito moderno do termo. Na passagem para a renascença ia implícita na ideia de autor, a ideia de realização verbal e plástica. E Gil Vicente era, segundo alguns, “diretor de espetáculos e contra - regra das festas da Corte”. Tal significa que trabalhou com elementos não-verbais do teatro. É factual que essa função implicava a organização de eventos.
A maioria da sua produção dramática foi realizada a “pedido” para ser apresentada em honra daquele Rei ou daquela Rainha, ou à Corte, por alturas específicas, normalmente festivas (nascimentos, batizados, casamentos). Foi com ele e por força da natureza peripatética da Corte nesses tempos que, de algum modo e por força do seu experimento, o lugar cénico (espaço de representação) foi sofrendo alterações que (muito embora correspondessem ao desenvolvimento dum processo mais global e histórico), acabaram por ter uma influência fundamental no crescimento do nosso Teatro, na passagem da Idade Média para o Renascimento. Pois, para lá da natureza da escrita dramática de Vicente, clara, concisa, quase diria radical, na sua enunciação temática. Prenhe de sentidos e arguta na crítica. E sempre mais aperfeiçoada à medida do desenvolvimento da sua Obra. O “fazer teatral” foi introduzindo a cada passo, novos e mais ousados elementos na escrita, como se a pena e os temas a abordar se soltassem na experimentação e surgissem no tablado de modo cada vez mais livre. Foi, talvez, por isso, que nalgumas obras surgem personagens (quase sempre desempenhadas por si mesmo, ou por outro actor na função de narrador) a deixar dito, que “e acaba em breve, porque não houve espaço para mais” ou “não foi mais porque foi pedido muito tarde”.
Estamos em Gil Vicente, num terreno do humano, num ambiente e espaço de Corte. Ora, essa natureza espacial obrigava e obriga ao aprofundamento de uma prática teatral. Implica uma relação específica e particular com os atores. E Gil Vicente foi, o que se chama hoje, diretor de companhia, no sentido mais fundo da artesania teatral. Ele cria e recria o texto “no palco” com o seu grupo. Desenvolve uma estética. Busca uma linguagem teatral, articulada entre a Palavra, o modo de a Dizer e o Corpo do ator (gesto). E assim recria e inventa o “espaço de representação”. O facto de ele ter sido um criador de eventos na e da Corte, terá sido de primordial importância para a fixação o texto teatral, entendido aqui como uma forma mais global (digamos caneva da commedia dell’arte: a palavra, o jogo plástico dos atores, os elementos cénicos), mas sobretudo, numa perspetiva de futuro (isto é, do que nos chegou da sua obra), para a compreensão sobre a modernidade e contemporaneidade dessa mesma Obra. Daí a importância das didascálias e das notas introdutórias justificativas dos Autos.
A sumária descrição dos elementos cénicos são hoje o material mais nobre para a compreensão plena da sua Obra Teatral (não fixada, nem canonizada) num contexto amplo de modernidade.
Sinto, nesta volta a Gil Vicente, uma força que emana do jogo de palavras, da teatralidade que subjaz ao corpo dos atores. Uma energia que puxa para a liberdade de criação, liberta pela palavra e pelo corpo. Há uma teatralidade na Palavra Vicentina. E isso implica um ritmo próprio, um tempo único e um espaço (digo aqui dimensão do mesmo, distância entre elementos cénicos fundamentais, entre os atores). E a procura criativa sobre esta conjugação de Unidades gera, em si mesmo, um léxico que é preciso descobrir em Gil Vicente.
Há cada vez mais para “Descobrir” e muito para “Compreender” na Obra e no Autor. E se é verdade que Gil Vicente, tal como Dante, se deleitava mais em condenar do que em salvar, é verdade que a mais significativa da “chamada Trilogia das Barcas” é exatamente a do Inferno, o que não deixa de ser ainda mais estimulante.
E se os Autos eram representados na Corte por alturas Festivas: Casamentos, batizados… como “entender” este Auto de Cadáveres?
Rui Madeira